Podcast revela como a artista construiu uma identidade musical única ainda na adolescência, transformando a dor em arte e o brega em potência
Muito antes de se tornar a Rainha da Sofrência e arrastar multidões com a força de sua voz, Marília Mendonça já era um nome respeitado nos bastidores da música sertaneja. Aos 13 anos, a jovem goiana foi contratada como compositora pela produtora Workshow, com um salário fixo de R$ 3 mil. Nessa fase, ainda anônima para o grande público, ela já moldava um som que viria a dominar o país anos depois — um estilo tão único que ganhou nome próprio: “mariliônico”.
É esse lado menos conhecido da artista que ganha destaque no segundo episódio do podcast “Marília – o outro lado da sofrência”, do portal g1. A produção mostra como a adolescente trancada no quarto, com caderno, violão e emoções à flor da pele, desenvolveu uma assinatura musical marcada por letras diretas, melodias densas e narrativas poderosas.
A primeira música registrada por Marília, “Minha Herança”, foi escrita aos 12 anos, inspirada no fim de um romance adolescente. De lá pra frente, a compositora não parou mais. Entre noites em claro e gravações caseiras em um MP3, ela passou a emocionar familiares e, pouco depois, os grandes nomes do sertanejo. “Ela se lamentava por amor perdido às seis da manhã, antes de ir pra escola”, relembra o irmão João Gustavo.
O empresário Wander Oliveira, da Workshow, percebeu rapidamente a intensidade do talento de Marília. Sua escrita era crua, dramática, e sem medo de parecer exagerada. Era uma entrega total — amor, dor, ciúme, orgulho — tudo em Marília vinha em volume máximo, e isso se refletia também nas canções.
O termo “mariliônica” nasceu entre os próprios colegas de profissão. O compositor Vinicius Poeta define assim as músicas que carregam tensão, mistério, emoção bruta e autenticidade — características que se tornaram sinônimos da artista. Já a cantora Luiza Martins resume: “Depois da Marília, o mercado inteiro ficou emariliado”.
A genialidade de Marília não estava apenas nas letras cortantes. Musicalmente, ela experimentava com estruturas incomuns no sertanejo, como os chamados acordes de empréstimo modal, que criam surpresa e ampliam o impacto emocional das canções. O músico Gustavo Vaz aponta esse detalhe em faixas como “Infiel”, que se tornou um hino mesmo sem ser uma aposta inicial da gravadora.
Marília era uma contadora de histórias nata. Em músicas como “Cuida Bem Dela”, escrita para Henrique & Juliano, ela dava voz a uma amante que se desculpa com a esposa do homem amado — uma trama densa, contada com simplicidade e sem julgamentos. Seu talento para dizer muito em poucos versos logo a tornou disputada entre os grandes intérpretes do gênero.
Em 2015, aos 19 anos, ela decidiu sair dos bastidores e gravar o próprio DVD. Quando perguntada sobre o que queria cantar, foi enfática: “Sou brega. Quero gravar brega.” Sem medo do rótulo, ela se aproximou do Nordeste — berço desse estilo historicamente marginalizado — e buscou parcerias com nomes como Vine Show e Vinicius Poeta. Juntos, criaram músicas que misturavam vulnerabilidade e força, como “4 e 15” e “Hoje Somos Só Metade”.
Foi nesse contexto que nasceu “Infiel”, gravada no estúdio de Eduardo Pepato, em Mairinque (SP). A canção, que mostrava uma mulher traída confrontando o parceiro e a amante, sem apelar para o papel de vítima, rompeu paradigmas no sertanejo — um gênero até então dominado por narrativas masculinas e conservadoras.
Com apenas três anos de carreira como cantora, Marília já era reconhecida por grandes nomes da música brasileira. Gal Costa, por exemplo, gravou “Cuidando de Longe” e a definiu como “a rock ’n’ roll da sofrência”. A música, considerada complexa demais para ser um hit, virou um marco.
A voz de Marília Mendonça falava com milhões porque vinha de um lugar real. Ela colocou em palavras o que muitas mulheres sentiam, mas não sabiam como dizer — ou não tinham espaço para dizer. Sua escrita rompeu com a estética da perfeição emocional e trouxe para o centro do palco o drama cotidiano das relações humanas.
A marca deixada por Marília vai além do sucesso comercial. Ela criou um estilo — visceral, emotivo, popular e profundo — que não apenas influenciou uma geração, mas também transformou para sempre o modo como o sertanejo é feito e sentido no Brasil. A música popular brasileira, de fato, nunca mais foi a mesma depois dela.
Fonte: G1
